WASTELANDIA

Ficções

QUIRALIDADE

Três segundos. É o tempo que demoro para lembrar onde estou depois que o alarme para. Sempre três segundos de vazio absoluto. Com a cara ainda enfiada no travesseiro, minha mão procura o celular no chão ao lado da cama. Aperto o snooze. Sonata ao Luar. Cecília escolheu para que tivéssemos manhãs bonitas. "Beethoven para acordar, Chopin para dormir", ela dizia, organizando nossas vidas em playlists. Agora só tenho o silêncio depois que para.

No silêncio, um latido. Impossível — o prédio não permite cachorros. Mas ali está, insistente como uma lembrança ruim.

Desbloqueio o celular. O gesto é automático, como respirar. Talvez seja a única coisa que ainda sei fazer sem pensar.

No banheiro, fecho a porta, embora more sozinho. Esse hábito vem do tempo com Cecília, quase esposa e, por indecisão minha, agora totalmente ausente. Não há sol na janela. O barulho dos pneus na rua molhada indica chuva. Sinto falta do cheiro de terra molhada.

Escovo os dentes evitando o espelho. Quando olho, meu reflexo hesita. Como se chegasse atrasado. No chuveiro, encosto a testa na parede. A água escorre e traz Cecília de volta. Sempre o mesmo olhar - pupilas movendo-se de um lado para outro, pêndulo de acusação. "Você nunca vai estar pronto para nada, Lucas. Nunca." O alarme volta a tocar. Fecho a torneira, irritado. Pego o celular com a mão molhada - escorrega e cai. A tela trinca como teia de aranha. Por um segundo, as linhas pulsam como veias. Fecho os olhos. Abro. Tudo normal. O telefone não responde mais. Seguro o botão até que morra. Com ele, morre também o projeto de Cecília: transformar melancolia em felicidade, felicidade em paixão. Uma progressão que ela acreditava ser possível.

Pego uma toalha e volto para o quarto, deixando um rastro molhado. Do guarda-roupa, camisa azul, calça preta. As mesmas de sempre. Paro na porta, hesitando. Como se esperasse algo - uma palavra, um sinal. Só há silêncio.

Uma rajada de chuva bate na janela. Decido levar guarda-chuva e capa.

Na rua, meu guarda-chuva se mistura aos outros. A cidade vira um arquipélago de lixo - sacos pretos, embalagens, bitucas cercados por poças que escondem buracos. Navego entre as ilhas sem prestar atenção, como se me desmaterializasse no trajeto.

A faixa amarela. Sempre penso na facilidade - um passo, dois segundos, fim. Esse pensamento me persegue há anos. Acordo no meio da noite vendo a luz do trem se aproximar. Sem o celular, sem música, a velha ansiedade volta.

Uma mulher idosa me olha. Inclina a cabeça, como se me reconhecesse. Como se eu fosse alguém que ela perdeu.

Nos trilhos, algo brilha - vidro verde de garrafa quebrada catching a luz fluorescente. Um segundo de beleza improvável. O trem passa, o vidro explode em luz antes de desaparecer sob as rodas.

A mulher abre a boca para falar, mas as portas se abrem. Fecho os olhos e me deixo empurrar para dentro.

Mesmo sem parar no café, chego vinte minutos atrasado. Luciana está na minha mesa, cabelo preto caindo sobre ombros retos, curvada sobre o laptop. Parece carregar um peso que não consigo ver.

Ela percebe minha presença e vira devagar. O movimento é calculado.

— Bom dia, Lucas. Tem uma questão aqui que precisa resolver hoje. Cliente grande, prazo apertado.

— Tentei terminar. Saí tarde ontem.

Minto. Fiquei conversando com o pessoal da noite - meus sites foram bloqueados, precisava matar tempo.

— OK. Prioriza isso agora e tenta não chegar atrasado. A equipe precisa de exemplo.

Revejo como ela pronuncia "OK" - o "O" se estende por tempo surreal antes de desabar na consoante. Evito seus olhos, sempre vermelhos, contrastando com o verde intenso das íris. Um colega uma vez disse que pareciam "de outro mundo". Ri na hora, mas algo ficou comigo.

O verde dos olhos dela me traz uma lembrança. Semana passada, ajudei a carregar um monitor para uma estagiária nova. Tivemos que ir ao almoxarifado no subsolo.

No corredor estreito, a luz fluorescente piscou. O rosto dela ganhou um tom esverdeado, os olhos pareciam brilhar com luz própria. Aquele olhar me pegou desprevenido - desconforto e fascínio ao mesmo tempo.

O monitor escorregou da minha mão. Nos movemos juntos para segurá-lo. Por um segundo, nossas mãos se tocaram. O contato durou um instante, mas pareceu infinito. Ela se recompôs rápido, voltou à eficiência habitual.

Entramos juntos há quatro anos, mesmo processo seletivo. Eu vinha do Direito, me formei em Letras; ela, Psicologia. No início éramos próximos - almoços, planos compartilhados em voz baixa. Um convite não correspondido matou o costume. Com o tempo, ela virou corporativa, eu continuei apenas existindo.

Sua transformação me irritava. Como se tivesse traído algo que combinamos sem palavras. A cada promoção dela, eu me convencia de que era indiferente. Mas havia ressentimento ali. Inveja mal disfarçada.

Luciana fecha o laptop e se levanta. Antes de sair, hesita por um segundo. Há uma tensão quase imperceptível em seus ombros que me faz lembrar do almoxarifado.

— Toma um café depois comigo? Tenho algo para perguntar. Não relacionado ao trabalho.

— Claro — respondo, tentando esconder minha curiosidade.

Ela volta instantes depois:

— Confirma com o pessoal quem vai no happy hour hoje? Para celebrar as promoções.

O sorriso é ensaiado demais.

— Happy hour?!

No momento que falo, me lembro e me sinto idiota. Ela revira os olhos com desprezo mal disfarçado.

Ela vai para a reunião, eu fico para terminar o trabalho. Mais tarde volta com os outros. Pessoas que vejo todo dia passam por mim como sombras. Cada um com seu jeito de aguentar.

Uma delas vem até mim:

— Lucas, não vi você na reunião.

— Não fui, tenho um caso para terminar ASAP — respondo, imitando Luciana.

— Ah, que pena, foi muito legal, a fala da Vilma foi inspiradora e...

— Sim, imagino. Deixa-me adivinhar: o futuro é digital, precisamos de mindset disruptivo e inovação será nosso key driver.

Seus olhos congelam, redondos como a boca. Ela força um sorriso e volta para a mesa.

No almoço, vamos todos exceto Luciana. Tentamos evitar falar de trabalho - clima, séries, qualquer coisa. Mas alguém sempre puxa o assunto. Reclamam dela, chamam de puxa-saco, carreirista.

Lembro do primeiro dia, nós dois perdidos naquele lugar imenso. Dois bichos assustados num labirinto de mesas e ambição.

— Não acho que ela seja má pessoa — digo. — Apenas tensa demais. Leva tudo muito a sério.

Alguém faz um gesto vulgar com as mãos. Todos riem, exceto eu. Sinto o rosto esquentar, gosto amargo na boca. Para mim, o almoço acabou ali.

Horas depois ainda estou trabalhando. Luciana passa e faz um gesto indicando café.

Quando chego, ela já me espera mergulhando o saquinho de chá. Suas mãos tremem levemente. A postura está menos rígida - lembra a garota dos primeiros dias. Isso me deixa desconfortável.

Ela levanta os olhos, olha em volta.

— Lucas, você ainda pensa em sair daqui? Fazer algo completamente diferente?

A pergunta me pega desprevenido.

— Todo santo dia. Por quê?

Outras duas pessoas se sentam na mesa ao lado.

— Nada — ela responde. — Só curiosidade. Você ficaria até mais tarde hoje? Temos aquele trabalho para terminar.

Acabo ficando até tarde para terminar o trabalho junto com Luciana e aceito dividir um táxi para o happy hour.

Durante o trajeto, ela fica concentrada no celular respondendo e-mails. Sem nada para fazer, arrisco conversa com o taxista. Ele fala sobre como a cidade muda com a chuva, como certos lugares guardam energia de quem passou por ali. 'Coisas que a gente sente, sabe, mas não explica.'

Concordo educadamente. Quando a chuva aperta, as luzes da cidade viram borrões no vidro. Uso isso como desculpa para me voltar à janela. Me arrependo de ter quebrado o silêncio.

Na porta do bar, a chuva continua forte. Esqueci o guarda-chuva na mesa. Saímos do carro, ela protege a cabeça com a bolsa, eu deixo os cabelos se molharem. Andamos devagar por conta de seus sapatos de salto. Apesar do impulso de correr, me mantenho ao seu lado.

Os outros já estão na mesa reservada, riem e falam alto. Assim que nos sentamos, uma colega faz discurso sobre trabalho e espírito de equipe. Outro colega, já bêbado, reclama:

— É incrível como entregamos nossas vidas por tão pouco enquanto eles lucram bilhões. Somos tratados como recursos, não como pessoas.

Luciana olha para ele:

— Ninguém é obrigado a ficar. A empresa faz até demais por alguns funcionários. Se não está feliz, é livre para procurar outras oportunidades.

Ele, visivelmente ofendido, vira o resto da cerveja e joga uma nota sobre a mesa - ignorando que o evento é pago pela empresa. Sai pisando duro, sem se despedir.

Um silêncio pesado se instala. A colega do discurso é a primeira a se levantar, murmurando sobre acordar cedo. Outro a segue, alegando dor de cabeça. O constrangimento serve de pretexto para uma debandada discreta. Em poucos minutos, a maioria se foi.

Eu, que cheguei atrasado e ainda esperava minha cerveja, perco o timing para uma saída elegante. Quando me dou conta, restamos apenas eu, Luciana e o fantasma da discussão pairando sobre os copos abandonados.

— Vamos pedir a conta? — arrisco.

— Meu vinho acabou de chegar — responde Luciana. — E gostaria de companhia.

O sorriso é completamente sincero. Pela primeira vez, sem performance profissional.

Minha cerveja chega. Ficamos em silêncio. Ela observa o movimento das pessoas, eu observo ela. Não gosto do que estou sentindo.

Depois de alguns minutos, termino minha cerveja e me levanto para ir embora. Antes que eu fale qualquer coisa, ela toca minha mão. O almoxarifado volta.

— Não, fica. Sério. Não quero ficar sozinha.

— Eu não vou, só vou ao banheiro — minto.

— OK.

No banheiro, deixo a água escorrer entre os dedos. Dessa vez, não consigo evitar meu rosto. O olhar que me fita de volta é pura reprovação. Envelhecer trouxe apenas marcas acima do nariz. Sulcos que logo serão o que há de mais marcante num rosto que nunca se destacou.

Por um instante, outro olhar se sobrepõe ao meu no espelho - pupilas movendo-se de um lado para outro, o mesmo pêndulo de acusação. Cecília. "Você nunca vai estar pronto para nada, Lucas." As palavras ecoam, não do passado, mas de dentro do vidro. Fecho os olhos com força. Quando abro, só meu rosto está lá.

Estou ficando louco. Melhor ir embora.

O pensamento não se concretiza. Volto resignado à mesa. Ela me olha - rosto corado pelo vinho, olhos mais brilhantes que o normal. Uma fragilidade que não tinha visto antes.

— Você não gosta muito de mim, né?

— Não, claro que não, não é isso — respondo, desprevenido.

— O que é então? Tenho a sensação que você tem desprezo enorme por mim.

Não estou preparado para isso. Não tenho energia para além da sinceridade.

— Não sei explicar bem. Lembra que entramos juntos? Mesmo dia, mesma universidade. No começo éramos próximos, mas aí você... não sei, virou corporativa. Eu fiquei de lado.

— Acha que não deveria ter feito o que fiz? Que não mereço estar onde estou?

— Não é isso. Você merece estar onde está. É que... ninguém entra aqui pensando em carreira, sabe? É só para pagar conta e vazar. Quando me efetivaram, fiquei feliz, mas não era para ficar.

Ela inclina a cabeça, estudando meu rosto com atenção que me lembra da mulher na plataforma do metrô. Como se procurasse algo além das palavras.

— E você nunca voltou para seus sonhos? O que te impede?

— Nunca voltei. Não consigo me importar pouco o bastante para largar tudo, mas também não consigo ser como você. Sua perfeição faz meus defeitos parecerem maiores. Nem sei mais o que eu queria.

Ela bebe o vinho.

— Você se sente acima do trabalho, faz as coisas só quando tem vontade e acredita que não teve o que merece na vida, que não teve o reconhecimento que deveria ter tido.

Me incomodo com a precisão.

— Vim de longe para estudar. Queria fazer mil coisas, conhecer o mundo, escrever...

Ela sorri. Um sorriso que reconhece algo familiar.

— Um monte de clichês. Todo mundo quer fazer coisas extraordinárias até que a vida atrapalhe...

— Deixa eu terminar?

— Deixo... — ela parece surpresa com o tom irritado.

— Aí nada disso aconteceu, e eu continuo aqui, sozinho, resolvendo problemas abstratos. Para pagar aluguel numa cidade que não gosto, comprar coisas que não me fazem feliz e continuar no mesmo ciclo.

— Você não vê o que tem. As pessoas gostam de você. Poderia ser muito mais.

O garçom interrompe, serve mais vinho e sugere mudança para uma mesa menor no canto, com vista para a rua - há um grupo grande que poderia usar nossa mesa.

Não estava preparado para essa conversa. Queria ir embora, dizer que não era justo ela falar assim comigo fora do trabalho. Mas tudo que sai é:

— Deve ser difícil entender. Sua família é daqui, você tem noivo, adora o trabalho.

Ela ri alto - som que não me lembro de ter ouvido antes, carregado de ironia que me atinge em cheio.

— A imagem que fazem da minha vida — ela repete. Há algo em seu olhar que me deixa sem ar, como se tudo fosse desmoronar.

Procuro algo para olhar, qualquer coisa que me tire daquela intensidade. O relógio digital no balcão: 21h47. Desvio o olhar, respiro, olho de novo: ainda 21h47.

Ela gira o anel no dedo. Uma vez. Duas. Na terceira, remove-o. O movimento é fluido, praticado. Coloca-o sobre a mesa entre nós. O metal faz um som específico contra a madeira - como moeda antiga caindo em poço.

— Era da minha avó — diz, mas há algo errado na frase. Como se as palavras saíssem em ordem diferente da pensada.

Pega a taça. Suas mãos tremem ligeiramente - não de frio ou nervoso. É outro tipo de tremor.

— Às vezes ainda entro no perfil dela — diz sem me olhar. — "Mamãe". A novela das oito, pausada. Ela abriu, mas nunca deu play.

Silêncio.

Desliza o anel no meu dedo mindinho. Observa-o ali por um segundo que se alonga, depois o retira.

— Terças e quintas — murmura. — Sempre o mesmo elevador. O mesmo "Como ela está hoje?" — imita uma voz grave, paternal. — Como se perguntasse do tempo.

Bebe. O vinho deixa uma mancha no copo.

— Mostrei o anel — levanta a mão. — "Sou comprometida." Ele sorriu. Aquele sorriso de quem acha que todo "não" é um "talvez".

Pausa longa. Olha o vinho no copo.

— O vazio não é preto — diz de repente. — É branco, bege, marrom. Paredes de hospital, papéis, café requentado e seu cheiro nauseante.

O garçom passa.

— Cingapura — a palavra sai num suspiro. — Finalmente.

Recoloca o anel em outro dedo.

— Você tem sorte — diz. — Sua paralisia é escolha.

Levanta a mão para chamar o garçom.

— Desculpa — diz, mas não parece arrependida. — Faz muito tempo que não falo com alguém... digo, falar de verdade, sem me preocupar...

O garçom traz a conta. Ela paga sem olhar o valor.

— Sabe o que é engraçado? — guarda o cartão. — Passei dois anos fingindo que trabalho era vida. Transformando tudo em números, metas, relatórios. E agora... — gesto vago — agora sei falar essa língua perfeitamente.

Fico sem saber o que dizer. Mas talvez não haja nada a dizer. Talvez seja esse o ponto.

O relógio: 21h48. Finalmente.

Saímos. O ar da rua tem gosto de cobre e ozônio. A chuva parou, mas as poças refletem um céu que não corresponde ao que vejo acima.

— Que horas são? — pergunto.

Ela olha o celular. — 21h47.

Rio. — O relógio do bar marcava isso há vinte minutos.

— Ou há vinte anos — ela responde, sem ironia.

Caminhamos na rua quase deserta. Mais à frente, Luciana aponta para uma travessa onde uma feira livre parece vibrar sob luz incerta.

— Ali — ela diz, mas sua voz soa distante.

A feira é um borrão de movimentos estranhos. Barracas que se erguem e recolhem ao mesmo tempo, gestos que se repetem, frutas com cores impossíveis.

— Você está vendo como tudo... dança? — murmuro, mais para mim mesmo.

Luciana não responde. Olha a feira, mas parece ver outra coisa.

— Quando eu era criança — ela começa — numa feira assim, peguei a mão de um homem achando que era meu pai. Ele puxou a mão, assustado. Minha mãe surgiu, achando que ele queria me levar... Papai nunca esteve lá, sabe? Ela era toda proteção que eu tinha.

Passo a mão pelos cabelos, esperando senti-los úmidos. Estão secos. Completamente. Uma vertigem me atinge.

— O que você tem? — ela pergunta.

— Nada — respondo, controlando a voz. — Só cansaço.

Um food truck apagado. Ou aceso. A luz oscila entre estados como se não conseguisse decidir.

— Queria que algo acontecesse — ela murmura. — Algo real.

— Isso não é real?

As primeiras notas da Sonata ao Luar chegam do food truck. Prendo a respiração, esperando que continue, mas o som se esvai. Apenas o zumbido da luz oscilante.

Ela me olha. Por um segundo, seus olhos não são verdes. São da cor do luto - aquele bege hospitalar que ela descreveu. Depois voltam ao verde impossível.

— Não sei mais a diferença — ela responde.

Não suporto mais olhar para ela. Ela acena para um táxi. O táxi cheira a mar. Impossível, mas inegável. O motorista tem olhos no retrovisor que não correspondem aos do rosto que vi pela janela. Estamos sentados em extremos opostos do banco. A distância parece oceânica.

— Para onde? — a voz do motorista surge sem aviso.

Luciana dá seu endereço. As palavras saem embaralhadas, mas ele entende.

O semáforo à nossa frente: vermelho. Um vermelho eterno, pulsante. Sempre esteve assim desde que entramos no carro; sempre estará.

Então ela desliza pelo assento em minha direção. Ou sou eu que me inclino? O espaço entre nós parece se curvar, anular distâncias. O tempo para.

— Lucas — meu nome em sua boca soa como uma pergunta sobre outra coisa. — Eu entendo perfeitamente.

Quando nos beijamos, o gosto é de vinho. E de quatro anos de silêncio. De manhãs no almoxarifado, luz fluorescente falhando, mãos que se tocaram sobre monitores antigos.

O beijo dura três segundos. Ou três eras. O semáforo continua vermelho.

Abro os olhos. Ela está no outro extremo do banco novamente. Como se nunca tivesse se movido.

— Aconteceu? — pergunto.

— O quê?

Seu batom está borrado. Ou sempre esteve. Ela sorri com ternura, seus olhos brilham. O semáforo fica verde. O carro parece não se mover e então estamos em movimento.

Na porta do prédio dela. O porteiro dorme sentado de olhos abertos.

— Quer subir? — ela pergunta. A pergunta contém outras perguntas dentro.

Me aproximo. Vejo meu reflexo no vidro da porta - mas é o Lucas de quatro anos atrás. Cabelo maior. Olhos ainda com alguma esperança.

— Não quero estragar isso — digo. — O que quer que seja.

Ela sorri e olha no fundo dos meus olhos. Um sorriso triste e verdadeiro, que carrega tudo que não foi vivido, mas aceita o que foi compartilhado.

— Você mudou — observa. — O Lucas que conheci teria subido. Teria consumido o momento e partido.

— E a Luciana que conheci não teria convidado.

— Talvez nenhum de nós seja quem pensamos conhecer.

Me aproximo e a beijo novamente. Ela fecha os olhos. Quando os abre, há algo diferente neles. Como se já estivesse partindo.

Entro no táxi. Olho para trás. Ela está na porta, faz um aceno com a mão, ainda indecisa.

Olho de novo. O reflexo ainda parece estar acenando, mas ela mesma já não está lá. Apenas o porteiro, ainda dormindo.

O motorista - o mesmo? outro? - liga o rádio. Beethoven. Segundo movimento. A minha deixa para acordar.

— Coincidência — murmuro.

— Não existe isso — responde o motorista. — Só padrões que a gente não vê.

Chego em casa. Deixo a porta aberta. No banho, a água forma padrões no vidro.

No trabalho, Vilma me espera. Luciana ao lado, mas distante. Como se existisse em outra frequência.

— Lucas — Vilma sorri com seu sorriso robótico. — Temos novidades.

Luciana não me olha. Ou me olha constantemente. Difícil dizer - sua presença oscila.

— Cingapura — diz Vilma. — Luciana parte amanhã. Ela indicou você para o lugar dela. Precisa decidir até segunda.

Aceito. As palavras saem antes do pensamento. Como se alguém falasse através de mim.

Luciana sorri. Pequeno. Real. Uma despedida e talvez uma bênção.

O resto do dia passa num borrão. Reuniões, documentos, cumprimentos dos colegas. Minha mente mal registra os detalhes. Luciana desaparece após a reunião da manhã. Sua mesa, no final da tarde, já parece abandonada. A rapidez de sua partida é quase tão desnorteante quanto os eventos que a precederam.

É quase noite quando encontro um envelope na minha mesa. Sem remetente, meu nome numa caligrafia que demoro para reconhecer como dela. Dentro: uma chave antiga e um endereço anotado num pedaço de papel. Nada mais.

O prédio é velho, com aquele charme melancólico das coisas que resistem. As escadas rangem. Dó sustenido menor. Sol sustenido. Mi. Os primeiros acordes ecoam a cada passo, como se o prédio inteiro fosse um piano tocando Beethoven.

Terceiro andar. A porta 304, cujos números parecem hesitar sob a luz fraca. Ou era 403? Não tenho certeza.

A chave gira na fechadura com um estalo seco. O apartamento parece respirar aliviado quando a porta se abre, exalando cheiro de poeira antiga e silêncio acumulado.

Está vazio, mas não abandonado. Como se esperasse por alguém.

No centro da pequena sala, uma mesa de madeira escura. Sobre ela, arranjo os itens com cuidado quase cerimonial:

A garrafa de vinho - a mesma marca do bar.

A pequena caixa de madeira escura.

E a fotografia.

Pego a foto. Sépia, bordas amareladas. "1962" rabiscado no verso. Uma mulher jovem, rosto parecido com o meu, olhos claros que sei serem verdes. O mesmo verde impossível.

Ela segura um bebê nos braços - a mãe de Luciana. E no dedo, o anel. Ou talvez não seja o mesmo. O anel mais jovem, antes de carregar tanto peso.

Abro a caixa. Lá dentro, o anel repousa sobre veludo desbotado. Ao lado, um bilhete com caligrafia firme:

"Lucas,

Talvez o tempo não seja linha. Círculo? Espiral?

Me lembrei que minha avó conheceu alguém uma vez. Num almoxarifado. Luz que falhava.

Não importa se você acredita, o que importa é que escolha.

L."

O apartamento tem janelas amplas que se abrem para o oeste. Lugar perfeito para ver o pôr do sol.

Então a memória volta - ela contra mim, gosto de vinho, as notas da escada ainda ecoando como pergunta no ar. Não suporto meu peso e me sento no chão.

As tábuas são frias e reais. A primeira coisa verdadeiramente sólida em dois dias.

O anel na minha mão. Pesado. Mais pesado que deveria. Coloco no dedo mindinho como ela tinha feito. Uma visão: Luciana no avião olhando nuvens. A velha do metrô sorrindo. E Cecília se virando contra o sol, dizendo "sim!".

Tiro o anel. As visões cessam. Coloco novamente. Nada.

Eu rio. Talvez seja só um anel. Talvez ela seja só uma mulher triste partindo para Cingapura e eu...

Fico ali por um tempo impossível de medir. A luz no apartamento não obedece ao sol lá fora. Em algum momento, me deito no chão de madeira fria. As tábuas rangem uma melodia quase familiar.

Fecho os olhos.

Acordo. Não há três segundos de vazio. Sei imediatamente onde estou - meu quarto, minha cama, o travesseiro com a marca solitária. Mas algo mudou. O peso no ar é diferente.

Luz da manhã entra pela janela. Ou seria tarde? O celular quebrado está no criado-mudo, cordão enrolado como sempre faço antes de dormir. Não me lembro de tê-lo colocado ali.

Seguro o botão. A tela trincada acende, luz vazando pelas rachaduras.

Uma notificação. WhatsApp. Três dias atrás - ou ontem, ou agora.

"Obrigada, Lucas."

Começo a chorar. Algo preso há muito tempo finalmente encontrou a saída.